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sábado, 31 de março de 2012

O caso do carbono indígena e as lições aprendidas.

Vem gerando um zum-zum-zum a história, que veio a público por uma reportagem da agência de notícias Pública, do contrato de venda de carbono florestal assinado entre os índios Munduruku e uma obscura empresa irlandesa denominada Celestial Green Ventures. A polêmica gira em torno da legalidade ou não do contrato, pelo qual os Munduruku “vendem” à empresa – por US$ 4 milhões anuais, distribuídos ao longo de 30 anos – o direito de comercializar eventuais e futuros créditos de carbono derivados da conservação da floresta existente em suas terras (TI Munduruku).


Na grande mídia, a história ganhou ares de ameaça à soberania nacional: os índios estariam vendendo, a preço de banana, uma fatia da Amazônia. Para os que estão em busca de razões para tirar terra dos povos indígenas (há várias propostas legislativas nesse sentido), isso seria a demonstração de que não se deve deixar nas mãos de pessoas tão irresponsáveis pedaços tão importantes de nosso território. Muito melhor seria deixar as terras públicas nas mãos de grandes produtores. Estes, embora também vendam muito do que produzem para multinacionais (Bunge, Cargill, Mafrig, etc.), o fazem em nome do “progresso”.
Não há, no entanto, qualquer ameaça à soberania nesse caso, pois o que está sendo negociado não é a terra ou a floresta que os índios preservaram. Mesmo que assim fosse, o contrato seria nulo, na medida em que a Constituição Federal impede que as terras indígenas ou suas riquezas naturais sejam alienadas a terceiros (Artigo 231, §4o). Jamais um tribunal validaria tal contrato.
No caso específico, o objeto do contrato é a “cessão”, por parte dos índios, do direito de comercialização de eventuais e futuros créditos de carbono que podem vir a ser gerados, a partir da conservação da floresta existente na TI Munduruku (99,5% da área ainda está preservada). Em linguagem jurídica, diríamos que o contrato não está alienando bens, mas mera expectativa de direito. Isto por dois motivos: a) não existe, neste momento, mercado estabelecido para créditos de carbono derivados de desmatamento evitado; b) mesmo que existisse, da forma como aparentemente foi feita essa “parceria”, nada garante que de fato não haverá aumento do desmatamento futuro na área. Explico.
REDD
A Conferência de Durban sobre Mudanças Climáticas, realizada no final do ano passado, jogou para 2020 o estabelecimento de um novo período de compromisso de redução de emissões de gases de efeito estufa para os países industrializados. Enquanto isso, os países que já cumpriram com suas metas atuais não precisarão aumentá-las e os que não conseguiram cumprir (Japão, Canadá, Austrália) ficarão sem qualquer meta.
Essa indecisão mundial praticamente inviabilizou o nascimento, num curto prazo, de qualquer mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) (saiba mais) que pudesse gerar a demanda por emissão de créditos oriundos de desmatamento evitado. Não há hoje, portanto, regras sobre como poderiam ser emitidos e muito menos um mercado para créditos florestais. O que existe é um ainda incipiente e desregulado mercado voluntário, o qual, embora salutar, aproxima-se muito mais de “marketing verde” do que de um mecanismo de redução de emissões. E que, por essa razão, tem uma demanda ínfima.
Além disso, há outro problema grave na negociação entre essa empresa e os Munduruku. Ela pressupõe que, no futuro, a floresta estará lá e que, portanto, se mercado e regulamentação houver, algum crédito será gerado. Mas o que garante que a floresta continuará preservada? Os US$ 4 milhões? Obviamente, não.
O desmatamento evitado não é o resultado de um contrato ou mesmo de um pagamento. Sobretudo em terras indígenas, ele só pode ser alcançado a partir de um adequado planejamento de uso do território, que possa projetar no futuro a forma como os índios querem lidar com os recursos naturais de suas terras. Na Colômbia, esse planejamento tem reconhecimento oficial (planes de vida) e é a base para o repasse de recursos públicos para gestão pelas autoridades indígenas. No Brasil, eles ainda não existem oficialmente, mas poderiam – e deveriam – ser incentivados se a Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI), elaborada pelo governo federal, em 2010, com ampla consulta às populações indígenas, já tivesse sido aprovada pela presidente da República.
Existem iniciativas positivas de discussão de REDD com povos indígenas em curso no Brasil, que partem da elaboração de um plano de uso do território. Questões como fiscalização das fronteiras, manejo florestal, estrutura das aldeias, transporte, saúde, educação, fortalecimento institucional das associações indígenas e aprimoramento dos sistemas agrícolas são elementos que devem constar de longas e profundas discussões entre os moradores das terras, anciões e jovens, pajés e agentes de saúde. Sem acordos internos e um planejamento adequado, é impossível garantir que não haverá desmatamento, pois, sobretudo com o avanço da fronteira agrícola para as regiões onde estão as terras indígenas, a conservação estará permanentemente ameaçada. O novo Código (des)Florestal em discussão no Congresso Nacional, por exemplo, permitirá que até 20% das Terras Indígenas possam ser desmatados para uso alternativo do solo (pastagens ou atividades agrícolas). Portanto, a conservação florestal (e dos estoques de carbono) é e continuará sendo uma opção dos povos indígenas, não um fato do destino.
Desafio
Uma vez que a maior parte das terras indígenas na Amazônia brasileira já foi oficialmente reconhecida, entramos agora numa nova fase, cujo desafio é justamente apoiar os povos indígenas a gerir suas terras num contexto totalmente distinto daquele que existia quando grande parte de seus atuais líderes nasceu. O avanço das estradas, hidrovias, hidrelétricas, fazendas, madeireiras e cidades traz ameaças, mas também oportunidades, que podem ser bem ou mal aproveitadas. Hoje grande parte da população indígena amazônica ainda vive numa economia de subsistência, com pouquíssimos serviços públicos (saúde e educação) disponíveis para ela e dependendo do assistencialismo da Fundação Nacional do Índio (Funai), ou de projetos-piloto executados em parceria com ONGs, para conseguir algum excedente monetário. Esta é uma situação obviamente insustentável num futuro mediato e, se não houver apoio público à opção “uso florestal”, muitos povos podem cair, mais cedo ou mais tarde, no dilema vivido pelos Pareci (MT), que hoje arrendam parte de seu território para sojicultores vizinhos, por absoluta falta de alternativas viáveis.
Fica claro, portanto, que nenhum projeto de REDD terá qualquer chance de sucesso se não se basear num projeto de vida das populações envolvidas, numa opção pela geração de bem-estar a partir do uso sustentável da floresta. Nesse contexto, eventuais créditos de carbono podem ser uma fonte valiosa de recursos para financiar a implementação desse projeto. Não a única, mas uma fundamental.
O caso dos Munduruku aparentemente não tem nada disso. O contrato paira sobre um vácuo. Não houve – pelo menos não veio a público – qualquer planejamento de uso do território, não tem qualquer acordo entre os próprios índios sobre o futuro. Não há uma estratégia sobre como lidar com as cada vez mais frequentes ameaças à floresta que ali existe, nem um plano de como capacitar as novas gerações a usá-la de forma tão parcimoniosa como as anteriores, mas com agregação de valor que lhes permita gerar bem-estar.
Esse contrato seria, portanto, fruto de um oportunismo de uma empresa obscura, que, no fundo, não ameaça o país ou a Amazônia, mas os próprios índios que o assinaram. Ele tenta, na verdade, criar um obstáculo jurídico aos Munduruku caso, no futuro, exista realmente um mecanismo de REDD – e de redução de emissões – em funcionamento no Brasil e no mundo, e as florestas de suas terras venham a ganhar algum valor por poder gerar créditos de carbono. Esse contrato obrigará os índios a negociar com essa empresa para poder acessar esse eventual e futuro mercado, já que a ela cederam o direito de gerar e vender esses créditos. Mesmo sendo um contrato evidentemente nulo, por trazer condições abusivas para os Munduruku, ele se tornará um trunfo para a empresa, que poderá atrapalhar qualquer negociação futura dos índios. Quem vai querer comprar créditos disputados na Justiça? A situação é semelhante à que ocorreu no início da internet, quando oportunistas correram para registrar domínios em nome de empresas famosas para depois com elas negociar a preço de ouro.
Portanto, embora descabido o temor com relação à soberania nacional, esse caso traz à tona a necessidade de se avançar numa regulamentação nacional para projetos de REDD que possa separar propostas consistentes de outras vazias, como essa. E uma proposta só pode ser consistente se estiver intimamente atrelada a um plano de uso do território, seja em terras indígenas, seja em outros locais. Por essa razão, urge que a presidente da República assine o decreto que institucionaliza a PNGATI e finalmente dê recursos para que a sociedade brasileira possa investir na boa gestão das terras indígenas, algo fundamental para o futuro do clima na Terra e no Brasil, da Amazônia e dos 205 povos indígenas que nela habitam.
* Publicado originalmente no site Adital.
Autor: Raul Silva Telles do Valle, do Socioambiental.org

Até amanhã, amig@s!

Fonte: Envolverde

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