O lendário bispo do Xingu, ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler encarna um capítulo da história do Brasil
Nesta segunda-feira, um homem grande, de sorriso caloroso e cabelos
brancos, embarcou em um avião para o Brasil. Para o Brasil apenas, não.
Para a Amazônia. Depois de 40 dias na Áustria, a terra onde nasceu, ele
sente falta da geografia que escolheu para ser sua desde o momento em
que, ainda jovem e tropeçando no português, descobriu maravilhado que o
Reno é “um igarapé comparado ao Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do
rio, das gentes, dos cheiros e até do clima da cidade paraense de
Altamira, com temperaturas e humores tão intratáveis que só agrada aos
mais fortes. Este homem, que circulava livremente por ruas imaculadas na
primavera austríaca, onde foi garimpar recursos para projetos sociais
na Amazônia, volta agora para sua rotina de prisioneiro. Há seis anos,
Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar
sob a escolta dos quatro policiais que se alternam para proteger sua
vida.
Perto de completar 73 anos, Dom Erwin, que acolheu e depois enterrou a
missionária assassinada Dorothy Stang, vive na mira de pistoleiros.
Homens contratados por gente graúda para calar uma voz que há quase meio
século eleva o tom na defesa dos mais pobres e dos mais frágeis, dos
indígenas, dos ribeirinhos e dos extrativistas da Amazônia. Dom Erwin
tem escrito, com rara coerência, um capítulo crucial de uma história
pouco contada no Brasil: o papel da Igreja Católica, especialmente a dos
religiosos ligados à Teologia da Libertação e às comunidades eclesiais
de base, na proteção dos povos da floresta – e da própria Amazônia – a
partir da segunda metade do século XX.
A maioria das etnias indígenas e das comunidades amazônicas que
conquistaram direitos e terras nas últimas décadas deve parte de sua
organização aos setores mais progressistas da Igreja Católica. Assim
como parte das lideranças políticas que hoje influenciam os rumos do
país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso vai muito além da
religião – é História. E uma história cujo sentido as alas mais
conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste capítulo,
Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a língua dos
Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.
E resistente. A cada ano, apesar da idade avançada e das dores na
coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu. Ao alcançá-las, peregrina
pelas comunidades dos cafundós. Dorme no barco, dorme em rede.
Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz por comer peixe no
almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado pelo povo mais pobre
– e odiado sem reservas por parte da elite paraense, que o ataca também
pela imprensa de Belém do Pará.
Desde a decisão de Lula, e agora de Dilma Rousseff, de arrancar Belo
Monte do papel, o quase lendário bispo do Xingu tem feito uma oposição
incansável contra a hidrelétrica que provoca controvérsia dentro e fora
do Brasil. Por causa dela, tornou-se uma presença incômoda para setores
do governo e do PT que um dia apoiou – inclusive com o seu voto.
Incômoda, especialmente, porque é difícil destruir a reputação de um
bispo que mantém a coerência desde a ditadura militar em uma das regiões
mais conflagradas do país, ajudou a escrever os artigos da Constituição
de 1988 que garantem os direitos indígenas e não recuou nem mesmo
diante da ameaça de perder a própria vida.
Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que pensa contra antigos aliados com o
mesmo desassombro com que denunciou grileiros e estupradores no passado
recente. Acusa o PT de “traidor” – e diz que alguns petistas são
“fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e Dilma implantaram uma
“ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos indígenas assegurados na
Constituição”. E afirma que Lula passará para a História como “o
presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos povos indígenas”.
Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de Dom Erwin Kräutler abre uma
janela para a compreensão da história contemporânea. A entrevista a
seguir foi feita na casa do bispo, em Altamira, com os policiais
militares que o protegem do lado de fora da porta, mas atentos. Os
quatro policiais demonstram uma preocupação que transcende o dever:
adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos e escuta suas
aflições de cada dia.
Em três horas de conversa, Dom Erwin não evitou nenhuma pergunta. Vale a
pena abrir um espaço para escutar com atenção um homem capaz de apontar
as contradições e ampliar a complexidade do momento estratégico vivido
pelo Brasil, no qual as escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos
amanhã.
Continue lendo
Continue lendo
Nenhum comentário:
Postar um comentário